Ciência, Resiliência e Conservação: A Jornada de uma Ecóloga Negra
Sou uma mulher negra de pele clara, nascida na periferia de uma cidade brasileira. Ao longo de toda a minha trajetória acadêmica, precisei de apoio financeiro do governo brasileiro para prosseguir nos estudos. Durante a graduação, as diversas disciplinas de ecologia despertaram em mim um profundo interesse pela área, o que me levou a realizar um mestrado em Ecologia de Biomas Tropicais na Universidade Federal de Ouro Preto. Posteriormente, concluí meu doutorado em Biologia Vegetal pela Universidade Federal de Minas Gerais, mantendo meu foco em Ecofisiologia Vegetal. Minha tese explorou a capacidade de plantas de um ecossistema altamente diverso, o Campo Rupestre, de absorver água através das folhas. Em 2021, minha tese foi reconhecida com o prêmio de melhor tese do Brasil na área de Biodiversidade, concedido pela CAPES, agência brasileira de fomento à pesquisa, vinculada ao Ministério da Educação (MEC).
Atualmente, sigo pesquisando as plantas dos campos rupestres, mas antes de tudo, é fundamental compreender o valor desse ecossistema. Os campos rupestres são compostos por uma mistura altamente diversificada de vegetação gramíneo-arbustiva, que se desenvolve em afloramentos rochosos de ferro, quartzo e arenito, localmente conhecidos como canga, sendo também suscetíveis a incêndios. Esse ecossistema abriga mais de 5 mil espécies de plantas conhecidas, das quais mais de 2 mil são exclusivas desse ambiente. Ou seja, trata-se de um ecossistema megadiverso. No entanto, devido às suas características edáficas peculiares, ele é alvo frequente da mineração. Além disso, o turismo desregulado, atraído pela sua beleza cênica, também representa uma ameaça. Portanto, estudar as razões pelas quais esse ecossistema é tão biodiverso é uma tarefa extremamente relevante e instigante. Para isso, utilizo uma série de ferramentas, como morfologia, anatomia, fisiologia, além de abordagens ômicas, para tentar responder a essa questão.
O que me motiva e instiga na minha pesquisa é saber que os dados gerados contribuirão para a conservação desse ecossistema tão singular. Compreender os fatores estruturantes dos diferentes campos rupestres e as estratégias adaptativas das plantas ajudará não apenas a entender a alta diversidade desse ambiente, mas também a prever quais grupos de plantas serão mais impactados pelas mudanças climáticas. Trata-se de aplicar a ciência e a ecologia de forma prática, oferecendo suporte para manejos mais adequados, com o objetivo de preservar os recursos genéticos e os serviços ecossistêmicos fornecidos à sociedade. Além disso, a pesquisa abre a possibilidade de propor novas áreas de proteção, corredores ecológicos, zonas de proteção e até estratégias para a recuperação de áreas degradadas.
Para o futuro, minha ambição é que a estratégia de absorção foliar de água (FWU) seja incorporada ao ciclo da água tradicional. Que o FWU seja ensinado nas escolas, ampliando o conceito do ciclo da água de uma forma mais abrangente. O caminho da água, tão familiar para nós, pode ser muito mais dinâmico do que imaginamos. A água não só sobe pelas raízes para as folhas e, eventualmente, para a atmosfera, mas também pode seguir o caminho inverso. Compreender esse ciclo completo da água nos ajudará a entender de forma mais eficaz os diversos ecossistemas e a real contribuição da atmosfera na dinâmica hídrica, tanto para as plantas quanto para o próprio ecossistema.
Além disso, espero que o ecossistema dos campos rupestres seja realmente conhecido globalmente, para que as pessoas entendam sua importância e a necessidade de sua proteção. Desejo também que os campos rupestres sejam reconhecidos como um Bioma, devido às suas características únicas que justificam essa classificação. Isso abriria caminho para políticas públicas mais eficazes voltadas para sua conservação, considerando tanto as mudanças climáticas quanto o uso da terra.
Acredito que reivindicar nosso espaço, tantas vezes negado, é essencial. Recontar nossas histórias a partir de nossas próprias perspectivas e vivências é uma forma de nos dar voz, especialmente quando essas vozes foram historicamente marginalizadas ou distorcidas — particularmente nas ciências, na academia e nas narrativas culturais mais amplas.
Tenho o privilégio de fazer parte do primeiro grupo de ecólogos negros que foi contemplado por um edital do Instituto Serrapilheira em parceria com a FAPERJ. Este grupo é composto por pesquisadores negros que atuam em diversas áreas da ecologia, tanto terrestre quanto marinha. Eles estão não só conduzindo pesquisas de ponta em seus respectivos campos, mas também demonstrando à sociedade a nossa competência em liderar e gerir projetos científicos de forma autônoma. Essa iniciativa é um grande exemplo de como podemos fortalecer a representatividade negra na ciência e trazer novas perspectivas para a ecologia.
Como mulher negra, percebi, especialmente durante o doutorado, que eu precisava me esforçar três ou até quatro vezes mais do que qualquer colega branco. Achei essa realidade cruel, pois, sendo uma mulher da periferia e com poucos recursos no ensino básico, eu já começava em desvantagem. Mesmo assim, era esperado que eu me esforçasse muito mais do que eles. Infelizmente, essa é a realidade que enfrentei e ainda enfrento. Além disso, ser uma mulher extrovertida dificultava ainda mais minha credibilidade entre meus pares. Na academia, há a crença de que para ser um pesquisador renomado e competente é necessário ser sério, introvertido e, às vezes, até arrogante. Só depois de receber o prêmio pela minha tese comecei a ser vista com outros olhos, mas eu já era competente antes do prêmio. Essa situação apenas reforçou o que já sabia: nós, mulheres negras, precisamos sempre fazer mais e mais. A parte positiva é que, apesar dessa realidade, encontrei boas pessoas ao longo do meu caminho, que me ajudaram a tornar o percurso um pouco menos pesado. Esses momentos de alívio são fundamentais para atravessar os obstáculos racistas e misóginos que enfrentamos.
Acredito que melhorar as oportunidades para nós, ecólogos negros, é essencial. Somos competentes, inteligentes e astutos. O problema está na falta de oportunidades. Para uma reparação histórica justa, levando em consideração que, geralmente, as pessoas negras enfrentam condições financeiras inferiores em comparação com as pessoas brancas, as oportunidades também devem ser diferenciadas. Dessa forma, incentivos como bolsas de estudo, cotas e editais que priorizem pessoas negras são fundamentais. Além disso, a inserção de pessoas negras em cargos de liderança e posições de alto nível é igualmente necessária para garantir maior representatividade em todas as esferas da academia.